Sem a água do Velho Chico, a esperança é a última que seca
LEONARDO SAKAMOTO
Artigo publicado na Revista Problemas Brasileiros, ed. 27, Setembro/Outubro de 2001.
O primeiro projeto foi concluído quando as barbas de dom Pedro II ainda dominavam a cena política do Brasil Império. Em 1852, os engenheiros do imperador já se preocupavam com o semi-árido nordestino, que queriam ver irrigado com a água do São Francisco. De lá para cá, a idéia surgiu nos planos governamentais e deles desapareceu inúmeras vezes, enquanto a região, ano após ano, sofria as conseqüências da seca.
Entre as decisões que mais animaram os habitantes daquela área, o destaque sem dúvida ficou com a proposta do governo Fernando Henrique Cardoso, uma promessa de campanha que o ajudou a amealhar os votos daquela população em duas oportunidades: em 1994, quando se elegeu pela primeira vez, e quatro anos depois, ao ser reeleito.
Grande foi a surpresa, portanto, de muita gente em julho último, quando o governo federal anunciou a suspensão das obras dos canais que iniciariam a transposição das águas. Orçado em mais de R$ 3 bilhões, o projeto aguardava apenas a aprovação do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) pelo Instituto Brasileiro do Meio-Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – sob intensa chuva de protestos de pesquisadores, ambientalistas, comunidades indígenas, populações ribeirinhas, setores da Igreja Católica e políticos contrários à transposição da forma que está proposta.
Trata-se, sem dúvida, de uma idéia polêmica, que promete ainda muitas idas e vindas antes que as primeiras gotas do São Francisco atinjam os açudes do nordeste. O projeto consiste na construção de dois canais artificiais distintos – eixos Norte e Leste –, destinados a ligar o rio ao semi-árido dos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. A água captada em Cabrobó (PE), acima da ilha Assunção, e no reservatório de Itaparica, representando cerca de 3% do volume do rio, seria então bombeada por
Assim que o governo anunciou a suspensão, Rômulo Macedo, ex-secretário de Infra-Estrutura Hídrica, responsável pelo projeto de transposição até meados deste ano, criticou a alteração. Afinal de contas, informou, R$ 40 milhões já foram gastos apenas em estudos básicos e pesquisas. "Vai haver um apagão da água no nordeste e então ficará muito clara a sua necessidade", disse.
Na outra ponta, o ministro da Integração Nacional, Ramez Tebet, justifica a decisão: "Estamos levando em conta o fato de que não podemos iniciar as obras. Há impedimentos que não dependem do governo", afirmou. O ministro, que por sinal é do Mato Grosso do Sul, região do generoso Pantanal, onde a água é abundante, apontou como um desses impedimentos uma liminar na Justiça que bloqueou o processo de audiências públicas para a avaliação do Rima. Afirma, entretanto, que o projeto não secou de vez e que os estudos continuam. O governo, aliás, está transferindo R$ 100 milhões – dos R$ 200 milhões previstos para a transposição no Orçamento 2001 – para a revitalização do São Francisco.
A operação, batizada de "Velho Chico, Novo Rio", informa o governo, deve começar ainda este ano com ações de reflorestamento, renovação da mata ciliar e organização da agricultura familiar, e é considerada pelo ministério como parte do projeto maior. O restante do orçamento será investido na conclusão de grandes açudes que futuramente receberão a água da transposição.
Segundo o ministro pantaneiro, o baixo nível do São Francisco foi o responsável pela alteração de rumos, determinando uma "mudança no perfil dos investimentos". Em Brasília, porém, comenta-se que essa guinada foi resultado mais de uma decisão política do que técnica. Afinal, com a inevitável demora na conclusão das obras, o presidente Fernando Henrique não teria tempo de receber os dividendos políticos antes do final do mandato. E não gostaria de deixar um presente desse porte para seu sucessor, principalmente se fosse um oposicionista. Conclusão: dificilmente os canais sairão do papel até dezembro de 2002, postergando para o próximo governo a decisão de tocar a parte mais importante e polêmica da obra, que é a retirada da água de seu leito natural e seu desvio para os canais.
O antecessor de Tebet no ministério, o potiguar Fernando Bezerra, grande defensor da transposição, não se conforma com a postergação. "O argumento de suspender o projeto devido à falta de água é ridículo, pois sua realização demoraria, pelo menos, quatro anos. Por isso, deveria ser iniciado já", afirmou.
Enquanto autoridades e interessados no assunto não se entendem, a seca vem se tornando cada vez mais grave. "O total desabastecimento de vários municípios nordestinos e a atual crise energética, com os reservatórios do sistema Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) praticamente vazios, são a prova disso", diz João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas do país em recursos hídricos. "E a tendência é haver o agravamento da situação. Comenta-se que o auge do ciclo será atingido por volta de 2005."
Para analisar os prós e os contras da transposição do São Francisco, a reportagem de Problemas Brasileiros percorreu municípios que seriam atingidos pelos canais do Eixo Norte – o mais longo –, visitando comunidades que, teoricamente, se beneficiariam diretamente do projeto. Além disso, descemos o rio de Cabrobó à foz, para tentar entender que mudanças seriam trazidas pela transposição e pela conseqüente redução no volume de água. E, principalmente, quais as perspectivas para o Velho Chico, o rio da integração nacional.
Em um quadro de forte estiagem, em que os colapsos no fornecimento de água e na produção de energia elétrica parecem inevitáveis, a idéia de levar parte do São Francisco para o semi-árido parece loucura. Muitos falam que seria o equivalente a fazer com que um moribundo doasse sangue. Prevêem que, caso isso aconteça, será a morte do rio. Por outro lado, milhares de famílias estão enfrentando uma situação insustentável. Se não forem adotadas medidas urgentes, é provável que ocorra uma catástrofe nos próximos anos. E, se as iniciativas forem paliativas, vão durar apenas até a próxima seca.
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